Pesquisadores envolvidos na criação da vacina contra a dengue compartilham sua experiência sobre o processo.

Amor, persistência, orgulho, vitória e gratidão. Essas palavras refletem o espírito dos cinco participantes desta matéria, que foram desafiados a resumir a jornada do projeto da vacina contra dengue do Instituto Butantan. Juntos, esses termos delineiam o desenvolvimento da Butantan-DV, uma trajetória marcada por desafios, alegrias e vitórias, reminiscentes da “Jornada do Herói”, um conceito narrativo amplamente reconhecido e descrito pelo mitólogo Joseph Campbell, onde o protagonista é convocado a uma aventura e enfrenta inúmeras adversidades, até retornar transformado.

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Neuza, Vanessa, Claudia, Patrícia e Flávio estão com o projeto desde o início, em 2010, representando mais de 50 profissionais – uma verdadeira “família dengue” – que ajudaram a desenvolver o novo imunizante tetravalente, recém-aprovado pela Anvisa e que logo estará disponível à população brasileira.

15 anos de colaboração: parte da equipe de desenvolvimento da vacina da dengue (Foto: José Felipe Batista)

“Somos apenas uma fração de um time que é fundamental. Também gostaria de reconhecer o trabalho dos coordenadores Gustavo Gonçalves Perrotti, Everton Magno De Sousa, Vivian Massayo Kazyama e Alyne Vieira Barros, que não estavam presentes neste encontro, mas cuja contribuição foi vital no desenvolvimento do Insumo Farmacêutico Ativo da vacina,” reforça Neuza.

Mais de 10 anos de convivência intensa foram passados, compartilhando frascos, células, microscópios e formulas, num ambiente que mesclava desafios profissionais e momentos pessoais. Após cinco anos, o grupo se reuniu novamente no Laboratório Piloto de Vacinas Virais (LVV) a pedido do Portal do Butantan, relembrando momentos inesquecíveis dessa jornada.

Neuza Frazatti Gallina dedicou mais de uma década ao desenvolvimento da Butantan-DV (Foto: José Felipe Batista/Comunicação Butantan)

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Convocação para a aventura e encontro com o mentor

As primeiras epidemias de dengue no Brasil foram registradas na década de 1980, conforme dados do Ministério da Saúde, com os casos iniciais em Boa Vista, Roraima, causados pelos sorotipos 1 e 4 do vírus. A partir de então, a doença se espalhou pelo país, culminando em mais de 1 milhão de casos suspeitos em 2010, o que reforçou a urgência de desenvolver um imunizante, dada a ausência de tratamento específico até hoje.

Nesta época, a pesquisadora Neuza Gallina Frazatti estava à frente do LVV. Motivada pela inovação, Neuza, com experiência em diferentes vacinas, foi convocada pelo ex-diretor do Instituto e atualmente diretor da Fundação, Isaías Raw, para liderar o desenvolvimento da vacina contra a dengue do Butantan.

“O professor Isaías sempre acreditou que eu poderia conseguir, e eu também não tive dúvidas. Trabalhei com ele por anos e ele sempre foi uma fonte de inspiração, mostrando que com paciência e competência podemos alcançar grandes feitos,” recorda a atual gerente do LVV.

Cerca de 50 profissionais participaram do desenvolvimento da vacina da dengue (Foto: Comunicação Butantan)

Aliados e os primeiros desafios

Com a tarefa em mãos, Neuza começou a planejar. Ela esboçou diversas estratégias no papel até encontrar a mais promissora, passando dias e noites pensando na melhor forma de produzir a vacina.

Simultaneamente, formou uma equipe inicial de 25 pessoas para a execução das diversas etapas do projeto. Claudia Regina Menezes Botelho, atual coordenadora de Desenvolvimento de Processos do LVV, integrou essa equipe desde o início, vindo da sua experiência como estagiária em 2004. Ela enfrentou grandes desafios na formulação da vacina, que visava combinar eficazmente os quatro sorotipos do vírus da dengue, envolvendo 17 diferentes receitas e mais de 50 experimentos.

“Houve um período intenso, começando às 5 da manhã para o trabalho na formulação. Era cansativo, mas todos sabíamos que estávamos lutando por um bem maior,” lembra Claudia.

Registro da equipe que desenvolveu a vacina da dengue no Butantan (Foto: Comunicação Butantan)

Da mesma forma, Vanessa Harumi Takinami e Flávio Mannaro Medeiros iniciaram suas carreiras no LVV em meados dos anos 2000. Vanessa cuidava do preparo de soluções e manutenção de células Vero, enquanto Flávio se dedicava à liofilização, processo que converte a vacina líquida em pó e que ele continua desenvolvendo na planta industrial dedicada à produção em larga escala do imunizante.

Patrícia Mourão Fuches juntou-se à equipe em 2009 e passou a cuidar do controle de processos, equilibrando sua vida pessoal – incluindo o nascimento do seu primeiro filho – com as exigências do projeto, sempre sob a compreensão de seus familiares da importância da missão que estavam empreendendo.

“A verdade é que nossas famílias entendiam o quanto isso era importante. O trabalho no laboratório consumia grande parte do nosso tempo, mas o apoio mútuo sempre foi essencial,” enfatiza Patrícia.

As colaboradoras Vanessa Harumi Takinami e Patrícia Mourão Fuches (Foto: Comunicação Butantan)

Desafios e recompensas

O desenvolvimento da vacina contra a dengue, ao abranger quatro tipos de vírus, revelou-se bastante desafiador, às vezes levando a equipe a questionar se o produto teria sucesso. “Cada revés era encarado como uma nova oportunidade. A perseverança era fundamental,” completa Claudia.

A cada pequena conquista, a equipe fortalecia sua união e camaradagem. “Quando alguém se desanimava, sempre havia um colega para apoiar e levantar o ânimo,” destaca Vanessa.

Entretanto, a equipe também encontrou espaço para leveza e diversão. Um momento memorável foi quando Flávio derrubou um garrafão de solução de limpeza na véspera de Natal. “Acabou lavando toda a sala! Claudia me ajudou a arrumar, mesmo sabendo que precisava ir embora,” recorda Flávio, que ainda é alvo de brincadeiras sobre o incidente.

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O clímax

Um dos grandes desafios enfrentados pela equipe foi a instabilidade das quatro cepas usadas no Insumo Farmacêutico Ativo. Testes mostraram que a potência viral caía drasticamente em apenas quatro horas de refrigeração. Para solucionar isso, a liofilização foi identificada como a melhor abordagem para garantir a estabilidade da Butantan-DV. “Realizamos inúmeras formulações e testes; o sentimento era de grande decepção ao ver que as pastilhas liofilizadas não estavam boas. Então, finalmente conseguimos!” enfatiza Flávio.

Com a superação desse desafio e outros, a candidata vacinal estava pronta para os primeiros testes clínicos, que contaram com cerca de 17 mil voluntários, confirmando a eficácia e segurança do novo produto. Ver os primeiros frascos saindo do laboratório para beneficiar a população foi um momento emocionante para todos da equipe.

Hoje, ao entrar no LVV, é comum ver a foto do primeiro voluntário que recebeu a dose única da Butantan-DV, uma recordação do momento em que a equipe percebeu que todo o esforço havia valido a pena, consolidando a certeza de que a vacina brasileira seriam um sucesso.

Equipe em celebração: a aprovação da vacina pela Anvisa coroou anos de dedicação (Foto: José Felipe Batista)

A transformação final

Fazer parte de um projeto tão significativo como o desenvolvimento da vacina da dengue é um marco de honra e responsabilidade. É saber que um produto pequeno, que cabe na palma da mão, pode carregar esperança e salvar vidas.

“É um imenso orgulho para nós e para a sociedade. Provamos que a ciência brasileira é tão forte quanto a de qualquer outro lugar do mundo. Nossa criatividade é incomparável. Espero que essa conquista inspire outros projetos”, ressalta Neuza.

Ao serem questionados sobre os planos após o registro da Butantan-DV pela Anvisa, Neuza resumiu: “Vamos comemorar! E começar a desenvolver outra vacina. Essa é a nossa missão!”