Nova abordagem terapêutica com fármacos para doenças genéticas hereditárias.

Uma pesquisa recente publicada na revista Science revelou um mecanismo celular que está ligado à herança de mutações genéticas e sugere uma nova abordagem terapêutica para diminuir o risco de doenças mitocondriais em recém-nascidos.

Os pesquisadores descobriram que a transmissão de mutações acontece através de um processo que impede a eliminação de mitocôndrias defeituosas, ao mesmo tempo que propaga seu número nas células, explicando como essas mutações escapam da seleção e podem levar a doenças futuras.

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As mitocôndrias são as principais fontes de energia em todas as células e possuem seu próprio DNA. Logo após a fecundação, um sistema de “controle de qualidade” conhecido como mitofagia tenta eliminar mitocôndrias defeituosas, utilizando a proteína ubiquitina como marcador para a destruição das células anormais.

A mitofagia é crucial para a compatibilidade entre o DNA mitocondrial (mtDNA) e o nuclear; no entanto, o mtDNA tem uma taxa de mutação cerca de 15 vezes superior à do genoma nuclear, apresentando um desafio para essa relação.

A enzima USP30, que atua sobre a ubiquitina, tem a capacidade de bloquear essa “rotulagem”, impedindo a eliminação das mitocôndrias danificadas. Desequilíbrios dessa enzima estão ligados a várias doenças, incluindo as mitocondriais e neurodegenerativas. O acúmulo de mutações resulta em disfunções mitocondriais, afetando negativamente a saúde.

Além disso, existem mutações leves que causam doenças, mas que não são detectadas e, portanto, não são eliminadas pelas células. Este mecanismo era pouco compreendido até agora.

Resultados da Pesquisa

Os pesquisadores demonstraram in vivo que, ao invés de ativar novas vias biossintéticas, as células respondem às mutações no mtDNA desativando o efeito da ubiquitina.

Nos primeiros dias após a fecundação, descobriram que mutações não eram percebidas devido a uma superativação de USP30, o que inibe a rotulagem das mitocôndrias defeituosas, resultando em um aumento no número e na massa mitocondrial, levando à transmissão de mutações prejudiciais.

A equipe também mostrou que a inibição de USP30 com o agente Compound 39 (CMPD39) poderia criar uma “janela de eliminação” para DNAs mitocondriais alterados logo após a fecundação, permitindo que o embrião elimine naturalmente mitocôndrias paternas. Ao contrário do DNA nuclear, que é herdado igualmente entre ambos os pais, o mtDNA é transmitido exclusivamente pela mãe.

Os cientistas sugerem que embriões podem ser tratados após a fertilização in vitro para reduzir células com alta carga mutacional antes da implantação, além de explorar a USP30 como uma possível terapia para prevenir doenças hereditárias raras, que afetam aproximadamente 1 em cada 8 mil indivíduos.

“As doenças mitocondriais podem causar consequências devastadoras e em muitos casos impedir a concepção. Enquanto o Reino Unido aprovou uma nova técnica de fertilização in vitro para evitar a transmissão dessas doenças, ainda carecemos de medidas preventivas e tratamentos adequados. Nossa descoberta pode abrir portas para uma nova terapia medicamentosa que ajude a evitar a transmissão de doenças, permitindo que as famílias tenham filhos saudáveis”, afirma Patrick Chinnery, professor de Neurologia da Universidade de Cambridge e autor principal do artigo.

Recentemente, uma equipe da Universidade Newcastle implementou uma técnica inovadora de fertilização in vitro que substituiu DNA mitocondrial mutante de mães por mitocôndrias saudáveis de doadoras. Chamado de terapia de substituição de mitocôndrias, este método resultou no nascimento de oito bebês (quatro meninos e quatro meninas), que podem ter sido preservados de doenças mitocondriais. Os resultados foram relatados na revista The New England Journal of Medicine.

“Embora a técnica de substituição de mitocôndrias seja polêmica e atualmente aprovada apenas na Inglaterra e Austrália, nossa pesquisa indica que existem outras abordagens, especialmente farmacológicas, para tratar embriões e prevenir a transmissão de doenças”, complementa Marcos Roberto Chiaratti, professor do Departamento de Genética e Evolução da UFSCar e coautor do estudo publicado na Science.

A pesquisa contou com o apoio da FAPESP, realizada em colaboração com o Biotechnology and Biological Sciences Research Council, e é liderada por Chiaratti, com a participação de Chinnery, para investigar os mecanismos moleculares que regem a transmissão de variantes de mtDNA.

Entendendo as Doenças Mitocondriais

As doenças mitocondriais são distúrbios metabólicos hereditários que impactam o funcionamento das mitocôndrias e podem resultar em danos a órgãos vitais, como cérebro e coração. Algumas das condições mais frequentes incluem a neuropatia óptica hereditária de Leber (LHON), síndromes de Leigh e MELAS (encefalopatia mitocondrial, acidose láctica e episódios semelhantes a AVC).

Os sintomas variam dependendo das células afetadas, incluindo problemas de crescimento, atrasos no desenvolvimento cognitivo, fraqueza muscular, perda de visão e/ou audição e convulsões.

Atualmente, não há tratamentos específicos disponíveis para essas doenças; algumas abordagens visam controlar os sintomas. O diagnóstico é complexo, exigindo uma combinação de dados clínicos cuidadosamente analisados e outros tipos de exames, como biópsias musculares, análises bioquímicas e testes genético-moleculares.