“Debret viveu uma vida dupla no Brasil. Ele era tanto pintor da corte quanto um artista que se sentava na sarjeta para capturar o cotidiano do Rio de Janeiro.” Assim descreve a jornalista Gabriela Longman, curadora da exposição Debret em Questão – Olhares Contemporâneos, em exibição no Museu do Ipiranga da USP. A mostra apresenta 35 gravuras originais de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), complementadas por obras de 20 artistas contemporâneos que reinterpretam seu trabalho. As gravuras foram gentilmente emprestadas pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, Instituto Itaú Cultural e Instituto Moreira Salles. Inaugurada em 25 de novembro, a exposição estará aberta até maio de 2026, com entrada gratuita.
Debret residiu no Brasil de 1816 a 1831, acompanhando a transição da Colônia para o Império e documentando a cultura escravocrata. A exposição é baseada no livro Rever Debret, do sociólogo francês Jacques Leenhardt — também curador da mostra —, lançado em 2023 pela Editora 34. O livro investiga a produção de Debret e as releituras de artistas contemporâneos, explorando a conexão entre imagens do passado e do presente.
Os artistas contemporâneos representados vêm de diversas regiões do Brasil, além de três artistas estrangeiros. A seleção inclui alguns dos que estavam na pesquisa inicial de Leenhardt, junto a outros que se juntaram depois. “A diversidade da arte contemporânea se reflete não apenas nos meios, como pintura, fotografia, instalação e vídeo, mas também nas abordagens”, afirma Longman. “As estratégias discursivas variam, desde a ironia e o humor até representações diretas da violência.”
Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
As obras de Debret, que observam questões sociais, não foram amplamente divulgadas no Brasil durante sua vida. Elas foram compiladas em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado em 1834, após seu retorno à França. Dos aproximadamente 800 desenhos e aquarelas que levou para Paris, Debret transformou 152 em gravuras para essa obra, acompanhadas de comentários sobre suas experiências nos 15 anos no Brasil, tornando-se um álbum iconográfico.
O livro retrata a natureza, os costumes e a vida cotidiana no Rio de Janeiro, incluindo uma significativa representação de pessoas negras escravizadas e indígenas. Os registros da violência contra a população negra eram tão impactantes que a obra não teve sucesso inicialmente. A Biblioteca Imperial recebeu um exemplar, mas recusou porque as representações da escravidão não alinhavam com a imagem idealizada do Império.
Debret também destacou a importância dos escravizados no Brasil, mostrando suas atividades e ressaltando que eram “os protagonistas na construção do Brasil”, enquanto muitas vezes os europeus se abstinham de trabalhos úteis, como expõe o texto da mostra. Na série de gravuras Pequena Enciclopédia dos Ofícios Exercidos pelos Negros, por exemplo, Debret critica a preguiça dos portugueses que, sob o pretexto de ter mão de obra disponível, se opunham à inovação técnica.
Na França, a recepção da obra também foi negativa. Longman observa que, embora as publicações de viagens pitorescas costumassem evocar imagens românticas e idílicas, a obra de Debret se distancia desse padrão, apresentando uma realidade que impactava o imaginário europeu de um paraíso tropical.
Somente na década de 1940 seu trabalho foi traduzido e divulgado no Brasil, onde Debret se popularizou nos livros didáticos, especialmente a partir dos anos 1950. A exposição demonstra esse fenômeno através de uma mesa que exibe esses livros, refletindo como Debret se tornou uma referência visual do período.
A curadora destaca que ao longo dos anos, a presença das gravuras nos livros didáticos aumentou, mudou também a técnica de impressão. As ilustrações que antes eram pequenas e em preto e branco ganharam mais destaque. “A Faculdade de Educação da USP possui uma biblioteca dedicada a livros didáticos que ilustra bem essa evolução”, comenta Longman.
Revisitar o passado para pensar o futuro
A representação da violência nas obras de Debret pode ser um choque para quem se vê nelas. A artista maranhense Gê Viana aborda esse aspecto em sua série Atualizações Traumáticas de Debret, presente na exposição. Utilizando colagens e manipulação digital, Viana, de origem indígena, reinterpreta as imagens que encontrou durante sua formação, refletindo sobre o lugar dos negros e indígenas na sociedade brasileira.
“A Gê transforma imagens de sofrimento em celebrações de vida e alegria, oferecendo uma visão otimista do presente e do futuro”, analisa Longman. Na releitura de Um Jantar Brasileiro, em que os personagens negros escravizados aparecem servindo, Viana apresenta agora uma família negra unida à mesa, simbolizando a união.
Por outro lado, a gravura Aplicação do Castigo de Açoite é reinterpretada por Viana sob o título Levantamento do Mastro. Festa do Divino Espírito Santo. Em uma colagem vibrante, substitui o prisioneiro por um mastro decorado, simbolizando liberdade e festividade.
O artista Denilson Baniwa, da aldeia Dari no Amazonas, utiliza a tecnologia em suas obras, como em Arqueiro Digital (2017) e Score 0003 (2022), reinterpretando Debret sob uma perspectiva indígena, integrando ícones contemporâneos como símbolos de wi-fi.
Heberth Sobral, de Minas Gerais, também se destaca ao usar bonecos Playmobil em suas reinterpretarações de Um Jantar Brasileiro e Negros Serradores de Tábuas, incorporando fotografia digital nas suas criações.
As imagens de mães negras, frequentemente retratadas como amas de leite, são ressignificadas por Isabel Löfgren, sueca-brasileira, e Patricia Gouvea, carioca, que acrescentam elementos da cultura afro-brasileira em suas obras, criando uma conexão espiritual e de proteção.
Jaime Lauriano, de São Paulo, apresenta sua série Justiça e Barbárie, que explora as relações de poder violentas do Brasil, ligando fotografias contemporâneas de violência às gravuras de Debret, provocando uma reflexão sobre a continuidade ou não de tais violências ao longo do tempo.
A artista Sandra Gamarra Heshiki, vivendo entre Lima e Madrid, questiona as dinâmicas do mundo artístico, utilizando gravuras de Debret como fundo para suas naturezas-mortas, provocando uma reflexão sobre o olhar do espectador.
Rosana Paulino, doutora em Artes Visuais pela ECA/USP, investiga as repercussões da escravidão, especialmente nas mulheres negras, utilizando ilustrações científicas de Debret como base para suas colagens, explorando os laços entre ciência, religião e colonialismo.
Um espaço na exposição destaca o desfile da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro de 1959, que teve Debret como tema. Fotos do evento, tiradas pelo fotógrafo franco-brasileiro Marcel Gautherot, permitem vislumbrar a reapropriação cultural dos passistas. Uma interação sensorial é proporcionada aos visitantes com a reprodução do samba-enredo, criando uma atmosfera vibrante.
A mostra também disponibiliza reproduções de obras em relevo para que o público possa conhecê-las tátilmente, incluindo obras de Debret e releituras contemporâneas. Todas as obras possuem descrições em braile.
Uma seção dedicada à arte-educação oferece mesas e jogos interativos que incentivam a participação dos visitantes, permitindo que compitam no reconhecimento de obras de Debret e suas releituras.
Longman enfatiza que a mostra convida os visitantes a apreciarem as imagens de forma mais contemplativa, analisando a história por trás delas, numa crítica ao consumo acelerado de imagens na sociedade contemporânea. “É um olhar crítico que transcende a figura de Debret, questionando nossa relação com o material visual.”
O projeto Debret em Questão faz parte da Temporada França-Brasil 2025, celebrando 200 anos de relações diplomáticas entre os países. Antes do Ipiranga, a mostra foi apresentada na Maison de l’Amérique Latine em Paris, onde reproduções foram exibidas, enquanto no Brasil, as gravuras originais são apresentadas, fruto de empréstimos de instituições.
A exposição Debret em Questão – Olhares Contemporâneos estará em cartaz no Museu do Ipiranga da USP até 17 de maio de 2026, de terça a domingo, das 10h às 17h (Parque da Independência, Ipiranga, São Paulo). A entrada é gratuita.

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