A recente licença da Butantan-DV, uma vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan com os quatro sorotipos da dengue, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é um importante avanço para a ciência brasileira. Em 2024, o Brasil registrou um número recorde de mais de 6,5 milhões de casos prováveis de dengue e 6.321 mortes, consolidando a doença como um dos maiores desafios de saúde pública globalmente.
A certificação da vacina é o resultado de 15 anos de trabalho profundo em pesquisa e desenvolvimento, culminando no primeiro imunizante completamente criado pelo Butantan. Para isso, foram necessárias 17 formulações, 12 condições de liofilização em grande escala, além de uma série de testes e experimentos de qualidade.
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“A produção da Butantan-DV envolve um sistema complexo, onde cada etapa precisa operar em perfeita harmonia para garantir a eficácia do imunizante. É um mecanismo que deve funcionar com precisão para alcançar o que chamamos de ‘vacina ideal’, que reproduz de forma segura e eficaz os parâmetros definidos nos estudos clínicos”, explica Antonio Cesar Pereira da Silva, diretor técnico de Produção da Vacina da Dengue.
Agora com a autorização da Anvisa, um milhão de doses do imunizante estão prestes a ser disponibilizadas aos brasileiros. Acompanhe os bastidores dessa jornada de desenvolvimento e descubra o que torna a vacina do Instituto Butantan tão distinta e desafiadora.
A complexidade da Butantan-DV: tetravalente, atenuada e liofilizada
O projeto da vacina contra a dengue teve início em 2010, em meio a uma grave epidemia que afetou o Brasil, com mais de 1 milhão de casos registrados – quase três vezes mais que em 2009.
A responsabilidade pelo desenvolvimento do imunizante ficou com Neuza Frazatti Gallina e sua equipe, que trabalharam na formulação utilizando cepas atenuadas dos quatro sorotipos do vírus da dengue, doadas pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH).
A utilização dessas cepas atenuadas permite que a vacina simule uma infecção “natural” sem provocar a doença, resultando em uma robusta resposta imunológica. Isso possibilita um esquema de vacinação de dose única, simplificando a logística das campanhas e aumentando a adesão popular.
“Vacinação é um pacto social: estamos protegidos quando atingimos um número mínimo de vacinados. Uma dose única acelera essa cobertura, facilitando o acesso às vacinas, especialmente em tempos de hesitação vacinal”, afirma Rosilane de Aquino Silva, diretora de Assuntos Regulatórios do Butantan.
Os benefícios desse esquema de dose única foram corroborados por um estudo de pesquisadores britânicos na Human Vaccines & Immunotherapeutics, demonstrando que programas com menos doses aumentam a cobertura vacinal e têm menos impacto econômico.
A Butantan-DV é uma vacina tetravalente, desenvolvida com os quatro sorotipos da dengue. Essa abrangência é crucial, já que a infecção por um sorotipo e a subsequente exposição a outro pode resultar em uma resposta imunológica inadequada, elevando o risco de formas graves da doença.
Desenvolver a combinação equilibrada entre as diferentes cepas foi um desafio significativo. Os pesquisadores precisaram determinar as quantidades exatas de partículas virais de cada sorotipo na vacina para garantir uma resposta imunológica eficaz.
“Esses parâmetros guiam todas as etapas da produção, desde as quantidades obtidas de cada cepa até a formulação final”, explica Alexandre Gonçalves de Rezende, gerente de Produção da Vacina da Dengue.
A liofilização transforma o imunizante em uma pastilha, necessitando de um diluente para a reconstituição antes da administração. Este processo é vital para manter a estabilidade do produto e reduzir a complexidade do transporte e armazenamento, pois a versão liofilizada tem validade prolongada e pode ser conservada em refrigeradores convencionais entre 2 °C e 8 °C, ao contrário de formulações líquidas que requerem cadeias de frio mais rigorosas.
Desafios enfrentados na Butantan-DV
Enquanto o Instituto Butantan desenvolvia sua vacina, o NIH iniciava a fase 1 dos estudos clínicos da sua própria candidata nos EUA, focando na segurança e tolerabilidade do produto em humanos. Concluído em 2012, o estudo mostrou resultados positivos, confirmando a segurança da vacina americana.
A similaridade entre as vacinas permitiu que o Butantan avançasse diretamente para um estudo de fase 2 em 2013, avaliando a eficácia preliminar em uma população com alto risco de exposição à dengue.
Posteriormente, o Instituto realizou um dos maiores ensaios clínicos do Brasil, a fase 3, iniciada em 2016, envolvendo cerca de 17 mil voluntários acompanhados por cinco anos. Esse estudo foi fundamental para confirmar a eficácia e segurança do imunizante, servindo como base para o registro na Anvisa.
Transição para a produção em larga escala
Com o sucesso dos ensaios clínicos, o próximo desafio foi transferir a produção da vacina do laboratório piloto para uma fábrica industrial. Inaugurado em 2018 e com 2.550 metros quadrados, este prédio se tornou o coração da produção da Butantan-DV.
Essa transição não foi simples. Envolveu uma mudança significativa nos volumes de produção e na necessidade de ajustes nas máquinas. “Tivemos que lidar com um liofilizador de maior porte e reorganizar a linha de envase”, comenta Daniella Ventini, gerente de Produção da Butantan-DV.
A liofilização foi uma das etapas mais desafiadoras, já que a “receita” do laboratório piloto não se aplicava às condições da linha de produção em grande escala. Foram testadas 12 condições distintas até a definição do ciclo ideal. “Cada ajuste deve ser validado para garantir a qualidade do imunizante, assim como foi nos ensaios clínicos”, destaca Antonio Cesar.
Durante este processo, o Instituto estabeleceu uma parceria com a farmacêutica MSD para compartilhar dados clínicos e tecnológicos, resultando em melhorias na produção, dado que ambas as vacinas utilizam cepas atenuadas do NIH.
“A colaboração permitiu a troca de evidências entre as instituições, otimizando as operações de produção e acelerando o processo de fabricação”, explica Daniella Ventini.
Validação e registro regulatório
As adaptações feitas na fábrica exigiram um estudo de consistência clínica, que foi realizado com cerca de 700 voluntários para garantir que a produção em larga escala mantivesse a qualidade do produto da fase piloto.
Com a conclusão dessa etapa, o Butantan avançou para a validação do processo produtivo, essencial para o registro. Essa fase incluiu testes de três lotes consecutivos em condições controladas, assegurando que todos os lotes atendem aos mesmos padrões de qualidade.
A validação do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) foi finalizada em 2021, e a do produto acabado em 2024, possibilitando a elaboração do dossiê de registro da vacina, que foi submetido à Anvisa no final de 2024 e finalmente aprovado.

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